O café de manjerioba que atravessa gerações em Fortim
Tradição é uma palavra que vem do latim traditio, que significa “entregar” ou “passar a diante”. Ou seja, é a transferência de costumes, ações, memórias, rumores, crenças, lendas, para as pessoas de uma comunidade, os elementos transmitidos tornam-se parte inseparável da cultura.
Na comunidade de Volta Grande, em Fortim, há 132 quilômetros de Fortaleza, uma tradição se mantém viva há três gerações. A agricultora Maria Conceição de Freitas da Silva, tem 75 anos e há mais de sessenta continua o legado que aprendeu com a mãe: o de fazer café de manjerioba.
Ela conta que, como era de família humilde, sua mãe, para economizar e priorizar outros alimentos, fazia o café de manjerioba. "Na época a gente era muito pobre. E a gente não tinha dinheiro pra comprar o que era necessário. Se era de comprar um café, ia comprar farinha. Porque a gente já tinha uma manjerioba pra fazer o café. Então economizava o dinheiro da farinha ou de outra coisa que a gente não tinha. Aí eu torrava o café. A gente fazia uma manjerioba e ela passava no carro, torrava. Depois ia pro pilão e peneirava. E depois ia fazer o café. Na época, a gente não tinha bolacha, então fazíamos um chibéu. Não sei se vocês conhecem o que é chibéu, mas na minha época eu conhecia. Botava farinha no café e a gente fazia um chibéu escaldado para comer", conta a agricultora Maria Conceição de Freitas da Silva.
Manjerioba é uma semente que nasce em regiões tropicais e subtropicais de todo o planeta e acabou se naturalizando em diversas áreas onde foi introduzida. Através dela pode ser extraída as sementes que após alguns processos resulta em café de manjerioba.
"Você colhe, passa no fogo primeiro, torra ela bem pretinha, aí a gente bota o açúcar, no mesmo caco que a gente está torrando, bota o açúcar e mexe para queimar o açúcar. Não pode deixar queimar o açúcar demais, nem pode ficar o açúcar cru. Aí ele ferve um pouco, a gente tira, bota numa vasilha, deixa esfriar um pouco, a gente vai pilando, pisa e pronto. Está feito o café, o pó", conta.
Apesar do café ter surgido como uma alternativa de economia para a mãe de dona Conceição, a história dele na família Freitas da Silva se prolonga há gerações, tanto que atualmente ela é conhecida em diversos lugares por perpetuar essa tradição.
A agricultora foi reconhecida pela Prefeitura de Fortim como Mestra da Cultura Popular por ser guardiã da memória da cultura popular tradicional. Além de ter sido protagonista do documentário "Guardiãs: protegendo o tesouro alimentar do Ceará", que conta a história do legado de dona Conceição e seu amor pelo café de manjerioba.
"Nunca pensei na minha vida que nós vamos por tão longe, com uma felicidade tão grande, que eu sou muito querida. Pelo menos me acho, não é? Aonde eu vou, quem eu encontro, por onde eu passo, essa alegria em cima de mim, todo mundo me abraça, todo mundo me beija, todo mundo me cheira, todo mundo... E a alegria começa. Através de uma coisa tão pequenininha, que é um carocinho, tão pequenininho, me formou uma pessoa tão grande. Deus me deu esse talento e fez tudo isso por mim. Porque antes eu não era reconhecida. Hoje, eu sou reconhecida por todos os cantos, até nos Estados Unidos. Lá o pessoal não me conhece como vocês estão me vendo agora, só por foto e vídeo, porque está no mundo inteiro", disse.
A agricultora conta que, apesar de ter uma semente tão pequena, a manjerioba a fez chegar longe, mesmo não esperando que isso fosse acontecer um dia, fazendo com que ela se sentisse abraçada por tanta gente.
"Não, eu não sabia que o café tinha esse valor. Eu não sabia nada. Mas hoje eu já sei. Esperando todo momento, toda hora, chegar gente na minha casa. O café é meu sonho. Ele me abraça, me cheira. O café é tudo para mim. Primeiro, Deus, que me ensinou, segundo, o café que me traz vocês. Eu nunca pensei, não, que o meu nome fosse representado aí em muitos cantos. A gente fazia só para fazer mesmo, para economizar, aproveitar que não tinha dinheiro para comprar outro, eu nunca pensei. Fazia para fazer, para tomar, né? Mas hoje a coisa mudou" disse dona Conceição.
Com 75 anos ela sente que o legado precisa ser passado a diante para os filhos, para que a história da família não morra, assim como a tradição do café de manjerioba. "Ah, o café de manjeroba é uma riqueza, é uma coisa muito importante para mim, muito importante mesmo, porque foi onde me levou à frente. Onde eu fui reconhecida através da manjerioba. É muito importante. E eu vivo dele. Eu não compro café para me beber. Eu queria que eles continuassem o meu processo. Porque isso aí carece paciência, carece amor, carece vontade, inteligência", disse.
Para Renato Freitas da Silva, agricultor e filho de dona Conceição, continuar o legado é algo que vai preservar não apenas a história do café, mas também a de sua família. O reconhecimento da tradição que a mãe dele mantém viva também é algo que ele jamais esperava ter.
"Acho que é a história da gente. A tradição é importante porque fala de quem é a gente. Quem foi a gente. Quem foram nossos familiares. Eu acho que isso conta uma história. É uma felicidade muito grande quando eu vejo alguém me mandando mensagem querendo vir aqui falar com ela. Para poder divulgar e reconhecer esse trabalho tão lindo que ela faz até hoje. Esse legado que ela vem trazendo. E sua avó, mãe, e hoje está com ela e está passando para os filhos. É importante para que essa história não morra. Essa tradição de continuidade. O reconhecimento da vida, da população que mora nessa comunidade. Isso é a história que vem de antes e está dando continuidade. Então é importante manter essa tradição. Estou muito feliz por esse reconhecimento. Muito feliz. Jamais esperava que o café de manjerioba ia levar o nome da minha mãe onde está hoje. Jamais. Nem ela mesmo, no meu melhor sonho, a gente acreditaria que isso iria acontecer. Quando aquela história tem que acontecer, né? As coisas vêm para acontecer", contou.
Apesar da idade já exigir que dona Conceição desacelerar o ritmo da vida e dos afazeres domésticos, ela conta que não pretende largar o café. "Só quando Jesus me chamar, eu tenho que deixar ele aqui porque eu não posso levar, mas enquanto eu puder fazer, o café não vai faltar em minha casa. Para mim, para o povo que chega, para me dar... É assim. Para mim, o café é uma felicidade", disse.